As primeiras tentativas de compreensão do mundo, pelo ser humano, derivavam do modo pelo qual o observador se detinha acerca da natureza circundante. Em tempos primordiais, sem o conhecimento ou a cultura contemporâneos, os primeiros caminhantes da espécie não entendiam o fato de as luzes do céu escuro serem bolsas de gás explodindo a bilhões de quilômetros de distância; escapava à sua inteligência a sucessão dos dias e das noites com base no movimento de rotação planetário; as doenças do corpo não eram entendidas como a fraqueza ou a degeneração celular decorrente de agentes externos minúsculos, ou de condições inatas. Tudo o que sucedia à vida cotidiana tinha por foco a natureza visível.
Mas a mente do intérprete já era abstrata, e buscava explicações de causa e efeito para todos os eventos da vida. O fogo ateado à campina após a queda de um raio, cujo som lembrava um rugido alto de animais, mostrava-se misterioso, porém não desprovido de sentido. No ímpeto de inserção e controle do meio de sua habitação, o ser humano também buscou conter os fenômenos naturais. Primeiro, através da imposição de sua linguagem própria aos eventos da natureza, o que deu origem à ideia de magia. Depois, ao associar suas próprias características físicas e mentais às ocorrências da natureza, criou narrativas peculiares para acompanhar as explicações criadas para as relações entre os indivíduos e o ambiente; surgiam os mitos.
A mitologia de cada cultura reflete e refere os padrões sociais enraizados na comunidade onde as histórias surgem. Há pontos em comum, como a jornada dos heróis, a batalha do bem contra o mal, a prevalência dos sentimentos, e, sobretudo, a presença de circunstâncias localizadas além do domínio dos sentidos, no campo do sobrenatural. Espíritos, demônios, anjos, monstros e deuses povoam o ambiente dos mitos, e as suas interações com os seres humanos auxiliam a descrever e constituir a realidade dos membros do coletivo que perpetua as histórias.
A aproximação dos mitos com as estruturas de poder e autoridade sociais podem levar à organização das religiões, no conteúdo das quais a adoração e a obediência a determinada divindade são preponderantes. Há valores morais contidos nos arquétipos das histórias tradicionais de toda religião, e os sistemas de crença são responsáveis pela sua comunicação aos fiéis do culto. Os principais marcos temporais da vida, bem como os modos de verificar-lhes o mérito e a qualidade, estão contidos na fé religiosa. Deste modo, tem-se a criação do mundo e o nascimento dos seres vivos, a justificação do sofrimento, da tristeza, do amor e da morte; o pós-vida, acessível a partir dos méritos das ações que o indivíduo empreendeu enquanto habitava o mundo.
É seguro afirmar que cada sistema religioso traz consigo, necessariamente, uma complexidade linguística e comunicativa original. Isto porque a religião não é somente a teogonia, ou a explicação da criação do mundo. Por refletir valores de uma comunidade, também é prescritiva de comportamentos, e de punições para a hipótese de infração aos deveres de conduta. Os pecados, ou a desobediência às determinações da divindade, podem levar a retribuições sancionadoras no campo extrajurídico.
Veja-se a prática do assassinato. A maioria dos sistemas de fé divina condena a disposição da vida de outro indivíduo através da ação consciente e voltada ao malefício. Diante dos cânones, ou balizas, das prescrições religiosas, o infrator poderá ser punido. No campo social, o ostracismo, o abandono, e o afastamento da convivência comunitária são castigos com perigosa repercussão para o pecador – até recentemente, a solidão de um ser humano poderia significar a sua morte sem auxílio no meio dos perigos do mundo. No plano etéreo, a porção imortal da consciência, ou a alma, estaria destinada ao castigo perene. Tudo isto, claro, se a atitude do assassinato não encontrasse justificativa.
Aqui está o cerne da problemática religiosa, no que se refere à padronização da conduta. O extremo das punições é, para o crente, a danação eterna de sua alma imortal. Os parâmetros pelos quais este evento acontece, e, talvez de modo mais urgente, quais as alternativas para se evitar tal destino, são o objeto dos catecismos religiosos, ou o conjunto de doutrinas de base da fé prática. Manter a coesão e a coerência destes parâmetros é uma das maiores preocupações das religiões enquanto estrutura e sistema, porque os seus postulados não são efêmeros, e tampouco se prestam à casuística. A religião tem como norte a perpetuidade, a ampliação, divulgação e difusão de sua mensagem de crença. Para que isto ocorra, e não esteja sujeito à ação modificadora do tempo, há de se ter clara a essência do credo, para a orientação dos clérigos, e de toda a comunidade que comunga da mesma fé.
Os livros sagrados, nesse sentido, são o meio mais seguro para perpetuar e manter a integridade religiosa. A história mundial das religiões, contudo, não é de todo convergente nesse sentido. Em primeiro ponto, é necessário mencionar o contexto de estudos da tradição institucional do Ocidente. A Europa exerceu sobre o mundo a determinante influência da exploração colonial ultramarina organizada. A quase totalidade da África, parte significativa da Ásia meridional e pacífica também o são. As Américas são fruto e herdeiras da colonização europeia, e, como se dá em todo processo colonial, a importação de regras e costumes para estes locais ainda se fez sentir por séculos após o fim do regime de exploração metropolitana.
A fusão das religiões monoteístas do Oriente Médio, e a sua comunicação ao Ocidente pelas rotas de comércio e intercâmbio consolidadas durante a expansão romana do século I da era comum, lançou as bases para a as três grandes religiões da humanidade contemporânea. Por ordem de antiguidade, tem-se o judaísmo, seguido pelo cristianismo, que floresceu sob a direta influência do primeiro; em sequência, vem o islamismo, que contém diversos pontos de intersecção com as duas primeiras. Em todas, vige a ortodoxia do apego à verdade revelada pela dividade no teor de textos compilados por indivíduos especialmente escolhidos para este fim.
Prof. Alberto Dias de Sousa
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